Xamanismo da Deusa Mãe
Noite de lua cheia, um grupo de mulheres em uma comunidade eco-espiritual na região metropolitana de Salvador/Ba se reúne em torno de uma fogueira para entoar cânticos sagrados, contar histórias, tocar tambor, dançar… Em um consultório terapêutico, em plena cidade de São Paulo, uma mulher toca tambor enquanto pessoas deitadas, de olhos fechados, parecem viver um estado de transe em busca de imagens que surgem do fundo de suas mentes… Em uma floresta, num território indígena norte-americano, um grupo de profissionais das mais variadas áreas chegam de lugares distantes para participar de um antigo ritual de purificação: a “sauna sagrada” ou “tenda do suor”… Em terras montanhosas do norte da Itália, uma Xamã sul-americana caminha em silêncio com um grupo na direção de uma grande cachoeira para a realização de um trabalho meditativo com os elementos da Natureza…
Um Xamã, no dia do equinócio de primavera, em um sítio arqueológico da tradição andina, oferece uma bebida preparada com uma erva sagrada local a um grupo de “estrangeiros”, revivendo um antigo ritual de busca da visão e cura… Com nuâncias próprias e das mais variadas formas, essas ações se repetem em muitos outros lugares do Brasil e do mundo.
De onde surgem? O que as motivam? Alguns pontos em comum parecem ligar essas pessoas entre si: quase todas elas, saídas de contextos urbano-modernos que priorizam uma busca desenfreada pela riqueza e conforto materiais, e cansadas do modelo de sociedade em que vivem, procuram algum tipo de re-conexão com a mãe Natureza e consigo mesmas.
Buscando (um novo) sentido para suas vidas cotidianas, elas tentam encontrar saídas pessoais e coletivas para as inúmeras crises que vivenciamos hoje – ecológica, econômica, social, de valores, entre muitas outras – as quais, em muitos aspectos, têm se tornado uma crise da própria humanidade, acelerando uma perda de qualidade de (a) vida sobre o planeta. Nesse sentido, tentando fazer o “caminho de volta”, parece existir no mundo contemporâneo um movimento de resgate de algumas antigas tradições, em que a base são as marcas mítico-mágico-religiosas deixadas pelos povos antigos em suas tentativas de compreender a intricada rede que liga o ser humano à Natureza e ao Universo.
O toque do tambor, os cânticos, as histórias e danças em torno da fogueira, os transes místicos, a cabana da purificação, o uso das ervas de poder, a meditação junto à Natureza, tudo isso fala de uma espiritualidade primal, originária, voltada prioritariamente para a Natureza, na qual o ser humano é visto como elemento indissociável de tudo mais à sua volta. Este fenômeno espiritual acompanha a humanidade desde os primórdios, desde os tempos pré-históricos, e, tendo emergido prioritariamente em sociedades caçadora-coletoras, tem servido como base para o desenvolvimento da espiritualidade humana. Nele, o ser humano, em especial o iniciado ou Xamã, tanto possui o papel de intermediador entre as forças imanentes e transcendentes do Cosmos, como busca integrar todas as potencialidades humanas para guiar as pessoas tento em tempos adversos, como em momentos de paz. Assim, o Xamanismo, compreendido aqui como um fenômeno (e não como um sistema) religioso, tendo resistido a todos os tipos de cataclismos naturais e sociais, chega hoje em ambientes tecnicistas-racionlistas da modernidade. Durante todo esse processo, principalmente em tempos de crises, ele tem sido chamado a apontar novas possibilidades, a partir da vivência de um olhar intuitivo e espiritual, bem como através de uma compreensão prática das leis e relações visíveis e invisíveis que regem o Universo. O olhar do Xamã é o olhar interior.
Foi tentando compreender os limites colocados pela crise atual, a partir desse olhar, que há pouco “defendi” minha dissertação para obtenção de grau de mestre, intitulada “Limites da Modernidade – a Atualidade do Saber/Fazer Tradicional”, sob a orientação do Prof. Roberto Bartholo. No entanto, esse processo começou em 1988, quando pela primeira vez me matriculei no Programa de Pós -graduação em Engenharia de Produção da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Por razões diversas, não consegui fazer minha dissertação naquela época. Dois anos depois conheci o Xamanismo; algo me dizia que havia encontrado o que estava buscando. Em 1996, retomei o mestrado, fazendo uma pesquisa sobre o Xamanismo tendo como base estudos da antropologia filosófica, da etnografia, da história das religiões, mitologia, além de depoimentos pessoais, escritos diversos sobre os povos nativos e minhas próprias vivências.
Depois de quatro anos o esperado dia da apresentação mais do que uma “defesa” foi uma celebração. Estava preparado. Em uma meditação visualizei um conselho de Xamãs, no qual eu também me encontrava. Eles estariam comigo no momento, assim como a “tribo” da Fundação Terra Mirim, que havia dedicado a meditação matinal ao meu trabalho. Falei quase que por quatro horas sem parar. Na primeira hora, todo o sistema elétrico e telefônico do lugar caiu, interrompendo a apresentação que fazia com transparências; tive que contar exclusivamente com a fala como recurso didático. Mas, havia algo mais… as janelas abertas deixavam a natureza do lugar entrar na sala através do vento e da visão das árvores dos jardins. As pessoas permaneciam atentas todo o tempo, como se estivéssemos vivendo ali, naquele longo período de tempo cronológico, um outro tempo – o tempo mítico a que eu me referia constantemente ao falar do Xamã. Nas palavras dos membros da banca, junto às vozes dos doutores da ciência, ouvia-se também o reconhecimento da possibilidade da Academia tratar temas dessa natureza com todo o rigor científico necessário, mas também com uma escuta silenciosa às dimensões da vida que não podem ser apenas traduzidas em palavras e fórmulas do pensamento. Este fato ficou visível quando um dos membros da banca, o mais graduado , pediu para que o tambor que eu havia trazido como demonstração fosse tocado. E assim fiz. A sala calou-se para ouvir o tambor… aquele momento, certamente, foi quando os Xamãs mais puderam ser escutados.
Senti que ali, dentro dos muros da universidade, um ritual antigo acontecia em um outro plano; os cânticos ecoavam… A fala do Xamã diz nas brechas das palavras, porque fala a voz dos espíritos e seres da Natureza